terça-feira, junho 30, 2009

Você pode sempre fechar os olhos, mas não pode fechar os ouvidos.

Segunda-feira à noite. Vamos pegar um cineminha? Oba!

Rua Augusta, Espaço Unibanco, sala 5.

Tudo muito bem, tudo muito bom, até que entramos na sala. Me deu um arrepio. Eu já tinha estado lá antes. Sei que foi uma experiência traumática, pois apaguei completamente da memória qual era o filme. Só lembro que durante o trailler, comecei a perceber que o som estava errado: apenas as caixas da direita funcionavam. Ainda antes de começar o filme, levantei e tentei chegar na sala de projeção pra avisar o "projetista", mas foi em vão. Não quis fazer escândalo, e enfim, estavam todos tão satisfeitos, com suas caras de "normal"...Mesmo a minha companhia na ocasião não tinha percebido nada antes de eu comentar. E depois que eu comentei, até se incomodou um pouco, mas whatever! Aí pensei..."bom, posso parar de ser fresca um pouco...". E assisti o filme. Apaguei da memória.

E agora, lá estava eu de novo.
Por "sorte", enquanto entrávamos na sala, tinha um cara saindo da sala de projeção. Falei com ele:
- Moço, já consertaram o som dessa sala?
- Som??????
- É, da última vez que eu vim aqui, só as caixas da direita funcionavam.
- ...
- Sabe? O surround? As caixas laterais?
- Mas aqui é digital, e "digital o som só sai da frente", da tela. (rs!!!)
- ah...sei...

Pensei que de repente o que ele queria dizer é que seria uma projeção em 2.1, ou estéreo, sei lá, qualquer coisa melhor que a última experiência. Mas não. O filme começou e o som estava 'igualzinho, só que pior': agora, além de só funcionarem as caixas da direita, do lado esquerdo tinha um ar condicionado dinossáurico bramindo a todo vapor.

Por sorte, agora sorte mesmo, dessa vez eu estava com uma pessoa "fresca" como eu. Ainda nos comerciais, pensamos em ir reclamar. "Será?" Olhamos pro lado, cinema apertado da porra, ia ter que fazer todo mundo levantar pra gente passar, deu uma dó, aquela gente com aquelas caras tão de "normal", não iam entender nada. Esperamos o filme começar pra ver no que dava. O filme era A Partida, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro desse ano. Levemente suportável, a princípio. Mas logo nos primeiros cinco minutos, começou uma cena maravilhosa de uma orquestra tocando maravilhosamente, num teatro quase vazio, a Ode à Alegria, da 9ª de Beethoven. Aí não deu pra aguentar. Fomos afastando as pernas de todo mundo, e saímos correndo.

nós dois no cinema ontem

Na bilheteria, fomos perguntar pra moça onde podíamos reclamar da sala.
- Aaah, tem que falar com o Fulano, procura ele lá. Sempre tem gente reclamando dessa sala!
- Ah, que bom! Sempre reclamam do som também?
- Som?????
- ....
- Não, só reclamam que é muito apertado, que tem cheiro forte, sei lá...

Fomos lá falar com o Fulano, e mais uma vez ouvimos a mesma pergunta:
- Som?????
Tudo explicado, pegamos o ingresso de volta para assistir outro filme depois. Mas pensando melhor agora, devíamos ter pedido o dinheiro de volta mesmo. Pelo jeito, no Espaço Unibanco, em todas as salas o som é tratado como um mero detalhe. Tá tocando? Tá dando pra ouvir alguma coisa, o diálogo e uns barulhinhos e uma música de fundo? Então tá ótimo, não reclama! O que impressiona é a total indiferença das pessoas. Será que ninguém percebe nada de estranho? Ninguém sai desse cinema percebendo um pequeno desequilíbrio, um zumbido em um dos ouvidos, alguma irritação inexplicável?

O que quero dizer é que o "Espaço Unibanco, sala 5", é apenas uma pequena representação de uma situação muito mais abrangente, de uma surdez parcial mundial. Engraçado (tragicômico), porque a audição é o sentido mais poderoso que possuímos. Você pode ouvir sons que estão a quilômetros de distância, mas não pode ver, provar, tocar ou cheirar coisas que estejam tão longe. Não temos uma visão de 360°. Mas audição sim. No entanto, escolhemos não ouvir. Escolhemos não perceber os sons que nos rodeiam - assim como no meu último post, eu não consegui lembrar de vários sons que me irritam. Assim como na primeira vez me conformei em assistir o filme com o som zuado. Assim como vivemos ouvindo casais brigando porque um "não ouve" o outro.

Vivemos num mundo em que reinam as imagens. Somos incentivados, desde crianças, a "ver para crer". Não importa se você ouve o seu namorado dizer que você é linda: se você se olha no espelho e não vê uma modelo de beauty magazine, pode começar o regime e juntar dinheiro pras plásticas (ou então escreve pro Extreme Makeover). Precisamos 'olhar nos olhos' de uma pessoa pra saber se ela está sendo sincera. Precisamos ver um e-mail, uma foto ou qualquer coisa do tipo pra entender e acreditar que uma pessoa está nos traindo. Precisamos de webcams. Precisamos ver o espetáculo das torres gêmeas explodindo para lembrar, ainda que vagamente, do absurdo que estamos vivendo. E assim por diante, e etc, etc, etc....

Sei que não foi sempre assim, e que em algumas culturas ainda existe uma consciência sobre o poder do som e da audição. Principalmente os orientais, com seus mantras, micro-tons e instrumentos perfeitamente afinados.

    "Tomemos a China como exemplo:
    Todos os anos, no segundo mês, poderia encontrar-se o imperador Shun jornadeando para o Leste, a fim de passar revista a seu reino e certificar-se de que tudo estava em ordem no imenso território. Entretanto, não o fazia verificando os livros de contabilidade das diferentes regiões. Nem observando o modo de vida da população, nem recebendo petições dos súditos. (...) De acordo com o antigo texto chinês, Shu King, o imperador Shi Shun percorria os diferentes territórios e... experimentava a altura exata das suas notas musicais.(...) Superstição primitiva? O imperador Shun, por certo, não acreditava nisso. Consoante a filosofia dos antigos chineses, a música era a base de tudo. Eles acreditavam, em particular, que todas as civilizações se moldam de acordo com o tipo de música que nelas se executa." (TAME, David. O Poder Oculto da Música.Cultrix, São Paulo, 1984)

Oh Deus, o que pensaria o imperador Shun a respeito do mais novo e pavoroso estilo musical, o funk neurótico? Haveria salvação para essa sociedade? E agora, quem poderá nos defender??? Será que o império das imagens é tão invasivo e agressivo, que só uma música assim consegue fazer vibrar o ouvido das pessoas? E afinal, o que importa nessa música é o som ou a bunda?

Enfim.
Queremos uma LIMPEZA DE OUVIDOS, é urgente.

(acabei de lembrar de mais um som que me irrita: carro-forte parado embaixo da janela)

Gostaria de entender como e quando começou essa nossa confusão dos sentidos. Pra começar, voltei a ler o Nada Brahma ("tudo é som", em sânscrito), do Joachim-Ernst Berendt. E é com mais alguns trechos desse livro que vou terminar esse post sobre som.

    "Os olhos são órgãos maravilhosos e, quanto melhores, mais 'penetrantes' ficam. Ser 'cortante', 'penetrante' é propriedade das facas e das tesouras. O homem de visão acumulou de tal sorte a racionalidade que, hoje, estamos assistindo à sua ruína. Na era da televisão, as pessoas que só vêem se deixam conduzir ad absurdum (para o absurdo). Elas já não enxergam mais o mundo, vêem apenas suas imagens e, embora pareça incompreensível, contentam-se com elas.
    (...)
    Que o homem moderno 'não dá mais ouvidos a Deus' já é fato de conhecimento geral.(...) O homem moderno não ouve mais a Deus. O homem moderno simplesmente não ouve mais. A primeira afirmação é teológica; a segunda pode ser comprovada, por exemplo, pelo fato de que, a despeito de toda a nossa avançada tecnologia, nós evidentemente não achamos necessário acrescentar aos nossos aparelhos de televisão um sistema de som que reflita as nossas possibilidades técnicas.
    (...)
    Quando tivermos reaprendido a ouvir também poderemos corrigir a nossa hipertrofia dos olhos. Só então compreenderemos - como disse Goethe (um homem de visão) - que 'os olhos do espírito têm de ver em uníssono com os olhos físicos, caso contrário há o risco de ficarmos olhando e, no entanto, as coisas passarem desapercebidas.' "
    (BERENDT, Joachim-Ernst. Nada Brahma: A música e o universo da consciência. Cultrix, São Paulo, 1983)

P.S. - Não se esqueça de nunca assistir um filme no Espaço Unibanco, Sala 5. Se quiser arriscar, repare no som. Se o som estiver ruim, reclame e peça o dinheiro de volta. E vamos assistir "A Partida", que parece ser mUito bom.

4 comentários:

Gabriel Madeira disse...

Lau,

Eu fui assistir a esse filme nessa mesma sala. O que me incomodou muito foi imagem escura. Comentamos durante a projeção.

Quanto ao som, nem reparei que só vinha do lado direito! Jura????

Huauauauauauau.

Mayumi disse...

Verdade, também reparei levemente na imagem escura!
hehehehe
pois é... o som!!!

:p

Eduardo Espíndola disse...

credo, como vc é enjoada. Preciso anotar num caderninho aqui pra lembrar de nunca ser enjoadinho assim (essas coisas são necessárias, senão a gente esquece.). Quando ao poder do som, acho q vc não conhece o poder do meu peido (6).

Mayumi disse...

ui! nossa...
é isso aí, Película, mostra pro pessoal quem é MACHO, man!

(e não esquece de anotar no caderninho mesmo, porque pelos que vejo nos seus textos, você andou esquecendo bastaaante de não ser enjoadinho.)