quarta-feira, maio 20, 2009

música insuportátil


nunca na história da humanidade o ato de ouvir música foi tão banal. hoje, praticamente toda música é portátil: dos clássicos e eruditos ao rock, dos batuques ancestrais aos eletrônicos, tudo cabe no iPod. e os técnicos de som ou os audiófiolos, com seus ouvidos delicados*, podem falar o que quiserem sobre a terrível perda de qualidade que tivemos com o advento do MP3, mas o fato é que a grande maioria das pessoas não vai nunca lamentar os harmônicos perdidos ou o desaparecimento de algumas frequências que praticamente só os seus cachorros ouviam.

estão todos muito bem, cada um mergulhado dentro do seu próprio fone de ouvido, ouvindo o que bem entender. e a possibilidade de escolha é gigantesca - até monstruosa, eu diria. basta um click pra se ter acesso a música de todos os gêneros, lugares, estilos e tempos que se possa imaginar. e assim, os ouvintes ficam cada vez mais exigentes: queremos a música perfeita para os nossos ouvidos, que fale com precisão sobre nossos sentimentos, ou então é só apertar o "next", baixar outro CD ou mudar de estação e pronto. não sei... mas parece que quanto mais opções temos, mais fechados ficamos à experimentação de coisas novas, 'estranhas', diferentes daquilo que estamos acostumados.

tudo isso comecei a pensar depois de assistir a um show de jazz experimental. era a Exploding Star Orchestra, fazendo juz ao nome, numa apresentação explosiva, brilhante, que explora os limites da audição, o limite do suportável. cada espaço do teatro é preenchido por sons, e outros sons que nasciam do encontro dos outros sons. três baterias, percussão, vibrafone, marimba, flautas, saxofones, trombone, baixo, guitarras, computadores e a corneta do Maestro Rob Mazurek violentam e acariciam o público. sonhos, pesadelos, paisagens inóspitas ou paradisíacas. assim como o espaço, todo o meu corpo foi invadido por frequências mágicas. mágica! e como se cada som fosse uma chave que abriu um lugar secreto, na última música comecei a sentir dores no maxilar, pontadas no estômago, e se a música não acabasse naquele momento e naquele acorde preciso e consolador, talvez eu tivesse ido pra algum lugar perdido, fora do corpo, ou fora do tempo.

entendo que para muitos isso possa ser insuportável. a uma certa altura, algumas pessoas começam a se levantar - algumas meio tímidas, outras iradas - e vão embora. entendo, porque penso que esse não seria um tipo de música que eu colocaria pra tocar no meu iPod enquanto vou pro trabalho ou pego a estrada. não é, pra mim, uma música portátil, que posso levar pra qualquer lugar e transformar em trilha sonora da minha vida. não, uma música assim exige que eu esteja presente e respirando, saboreando, vendo e tateando o som. para chegar ao final do espetáculo, a pessoa precisa se entregar e estar atenta ao presente - coisa que faz muita falta nesse mundo que não pára de correr pro futuro pra superar o passado.

por isso, entendo quem não gosta de jazz experimetal. eles não têm tempo pra ouvir. ou sentem que ali não tem sentimento, ou que a música não corresponde às suas próprias emoções. música estranha, que parece não 'falar sobre' nada, às vezes triste, quase sempre barulhenta, e ao mesmo tempo tão alegre que parece se perder em caos. enfim, não sei bem quais são as razões, e por enquanto me conformo com a máxima "gosto não se discute"(apenas, muitas vezes, se lamenta). mesmo assim, espero que todos possam um dia experimentar uma hora de imersão nesse universo mágico, matemático e sinestésico que é constantemente criado e modificado e renovado e improvisado por essas entidades monstruosas que são os músicos de jazz.

E como já não sei mais exatamente o que estou fazendo aqui, deixo mais uma vez a palavra com Clarice Lispector:

"(...)Sei o que estou fazendo aqui: conto os instantes que pingam e são grossos de sangue.

Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que mal tem isto? improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria, improviso diante da platéia.
(...)
O que diz este jazz que é improviso? diz braços enovelados em pernas e as chamas subindo e eu passiva como uma carne que é devorada pelo adunco agudo de uma águia que interrompe seu vôo cego. Expresso a mim e a ti os meus desejos mais ocultos e consigo com as palavras uma orgíaca beleza confusa. Estremeço de prazer por entre a novidade de usar palavras que formam intenso matagal. Luto por conquistar mais profundamente a minha liberdade de sensações e pensamentos, sem nenhum sentido utilitário: sou sozinha, eu e minha liberdade. É tamanha a liberdade que pode escandalizar um primitivo mas sei que não te escandalizas com a plenitude que consigo e que é sem fronteiras perceptíveis. Esta minha capacidade de viver o que é redondo e amplo — cerco-me por plantas carnívoras e animais legendários, tudo banhado pela tosca e esquerda luz de um sexo mítico. Vou adiante de modo intuitivo e sem procurar uma idéia: sou orgânica. E não me indago sobre os meus motivos. Mergulho na quase dor de uma intensa alegria — e para me enfeitar nascem entre os meus cabelos folhas e ramagens."

Um comentário:

Ventos Internos disse...

Hmm, parece bom, vou dar umas clicadas por ai p ter uma ideia do que se trata... Achei interessante a foto do sangue. Hoje fiquei buscando fotos na net p o post da raiva e achei exatamente essa foto e a que eu acabei colocando, foi muito dificil escolher entre elas, mas acabei optando pelo olho de fogo e agora me deparo com ela no seu blog... :) beijos. lua