quinta-feira, agosto 14, 2008

...sobre sons e assombros...

(trechos de Água Viva, de Clarice Lispector)

(...) Inicia-se um som de lado, como a flauta que sempre parece tocar de lado - inicia-se um som de lado que atravessa as ondas musicais sem tremor, e se repete tanto que termina por cavar com sua gota ininterrupta a rocha. É um som elevadíssimo e sem frisos. Um lamento alegre e pausado e agudo como o agudo não-estridente e doce de uma flauta. É a nota mais alta e feliz que uma vibração poderia dar. Nenhum homem da terra poderia ouvi-lo sem enlouquecer e começar a sorrir para sempre. Mas o homem de pé sobre o único pé - dorme reto. E o ser feminino estendido na praia não pensa. Um novo personagem atravessa a planície deserta e desaparece mancando. Ouve-se: psiu; psiu! E chama-se ninguém.

Acabou-se agora a cena que minha liberdade criou.
Estou triste. Um mal-estar que vem do êxtase não caber na vida dos dias. Ao êxtase devia se seguir o dormir para atenuar a sua vibração de cristal ecoante. O êxtase tem que ser esquecido.

(...)

E Deus é uma criação monstruosa. Eu tenho medo de Deus porque ele é total demais para o meu tamanho. E também tenho uma espécie de pudor em relação a Ele: há coisas minhas que nem Ele sabe. Medo? Conheço um ela que se apavora com borboletas como se estas fossem sobrenaturais. E a parte divina das borboletas é mesmo de dar terror. E conheço um ele que se arrepia todo de horror diante de flores - acha que as flores são assombradamente delicadas como um suspiro de ninguém no escuro.

Eu é que estou escutando o assobio no escuro. Eu que sou doente da condição humana. Eu me revolto: não quero mais ser gente. Quem? Quem tem misericórdia de nós que sabemos sobre a vida e a morte quando um animal que eu profundamente invejo - é inconsciente de sua condição? Quem tem piedade de nós? Somos uns abandonados? Uns entregues ao desespero? Não, tem que haver um consolo possível. Juro: tem que haver. Eu não tenho é coragem de dizer a verdade que nós sabemos. Há palavras proibidas. Mas eu denuncio. Denuncio nossa fraqueza, denuncio o horror alucinante de morrer - e respondo a toda essa infâmia com - exatamente isto que vai agora ficar escrito - e respondo a toda essa infâmia com alegria. Puríssima e levíssima alegria. A minha única salvação é a alegria. Uma alegria atonal dentro do it essencial. Não faz sentido? Pois tem que fazer. Porque é cruel demais saber que a vida é única e que não temos como garantia senão a fé em trevas - porque é cruel demais, então respondo com a pureza de uma alegria indomável. Recuso-me a ficar triste. Quem não tiver medo de ficar alegre e experimentar uma só vez sequer a alegria doida e profunda terá o melhor de nossa verdade. Eu estou - apesar de tudo oh apesar de tudo - estou sendo alegre neste instante-já que se passa se eu não fixá-lo com palavras. Estou sendo alegre neste mesmo instante porque me recuso a ser vencida: então eu amo. Como resposta. Amor impessoal, amor it, é alegria: mesmo o amor que não dá certo, mesmo o amor que termina. E a minha própria morte e a dos que amamos tem que ser alegre, não sei ainda como, mas tem que ser. Viver é isto: a alegria do it. E confortar-me não como vencida mas em um allegro com brio.

Aliás não quero morrer. Recuso-me contra "Deus". Vamos não morrer como desafio? Não vou morrer, ouviu, Deus? Não tenho coragem, ouviu? Porque é uma infâmia nascer para morrer não se sabe quando nem onde. Vou ficar muito alegre, ouviu? Como resposta, como insulto. Uma coisa eu garanto: nós não somos culpados. E preciso entender enquanto estou viva, ouviu? Porque depois será tarde demais.
Ah esse flash de instantes nunca termina. Meu canto do it nunca termina? Vou acabá-lo deliberadamente por um ato voluntário. Mas ele continua em improviso constante, criando sempre e sempre o presente que é futuro. Este improviso é.

Quer ver como continua? Esta noite - é difícil te explicar - esta noite sonhei que estava sonhando. Será que depois da morte é assim? o sonho de um sonho de um sonho? Sou herege. Não, não é verdade. Ou sou? Mas algo existe.

Ah viver é tão desconfortável. Tudo aperta: o corpo exige, o espírito não pára, viver parece ter sono e não poder dormir - viver é incômodo. Não se pode andar nu nem de corpo nem de espírito.

Eu não te disse que viver é apertado? Pois fui dormir e sonhei que te escrevia um largo majestoso e era mais verdade ainda do que te escrevo: era sem medo. Esqueci-me do que no sonho escrevi, tudo voltou para o nada, voltou para a Força do que Existe e que se chama às vezes Deus.

Tudo acaba mas o que te escrevo continua. O que é bom, muito bom. O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas. Hoje é sábado e é feito do mais puro ar, apenas ar. Falo-te como exercício profundo de mim. O que quero agora escrever? Quero alguma coisa tranqüila e sem modas. Alguma coisa como a lembrança de um monumento que parece mais alto porque é lembrança. Mas quero de passagem ter realmente tocado no monumento. Vou parar porque é sábado. Continua sábado. Aquilo que ainda vai ser depois - é agora. Agora é o domínio de agora. E enquanto dura a improvisão eu nasço.

E eis que depois de uma tarde de "quem sou eu" e de acordar à uma hora da madrugada ainda em desespero - eis que às três horas da madrugada acordei e me encontrei. Fui ao encontro de mim. Calma, alegre, plenitude sem fulminação. Simplesmente eu sou eu. e você é você. É vasto, vai durar.

O que te escrevo é um "isto". Não vai parar: continua.
Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo.
O que te escrevo continua e estou enfeitiçada.

2 comentários:

Anônimo disse...

Viva Clarice!

(Romeu, lurker e anônimo)

Mayumi disse...

viva!!!